quarta-feira, 16 de julho de 2014

Extensão da vida

Estava no ônibus lendo Dorothy Parker. O coletivo se encontrava em uma engarrafada rua da Zona Sul do Rio de Janeiro, mas meu cérebro individual e astuto passeava pela Quinta Avenida, em Nova York. No entanto, a realidade veio. Ela sempre vem. Ela sempre tenta destruir a arte. Ela acabou com o futebol da Copa e nos trouxe o Brasileirão.

No intervalo de cada crônica ou conto da genial Dorothy, eu organizava meus pensamentos e emoções. Pensava na reportagem do dia, no roteiro que estou escrevendo há tantos meses, na peça teatral que vou escrever. O teatro é sempre a vanguarda. O futuro. Ao mesmo tempo que chegava no ponto das certezas, me perdia nas curvas das dúvidas.

Um garoto invadiu o ônibus com uma faca nas mãos e muita droga na cabeça. Ele estava visivelmente transtornado e foi na direção de uma moça, sentada na cadeira à minha frente. No veículo, além dos dois, estávamos eu, um senhor de uns cinquenta anos e o motorista - um senhor de uns cinquenta anos.

Em poucos segundos, o garoto proferiu um engarrafamento de insultos enquanto tentava arrancar a bolsa da moça. Tudo isso com a faca apontada para o coração da dama. Levantei do meu assento e sem exclamações dei uma de herói socialmente correto.

Tentei, na conversa, convencer o moleque - que tinha uns 15 anos - a não fazer aquilo. Ele me ouviu. Escutou como eu não esperava que fosse fazer. Entretanto, sem mais nem menos, me deu um golpe com a faca. Por sorte a arma branca estava cega. E ele também. Tentou me acertar a barriga, mas estava tão afetado por alguma "química" que a investida passou longe.

Ele caiu na cadeira do coletivo e ficou acuado. Acho até que chorou. Peguei a faca dele. O senhor de uns cinquenta anos queria encher o jovem de porrada; não deixamos. O garoto foi embora viver a cruel realidade, sem Dorothy Parker, certezas, duvidas ou sonhos.

Eu olhei para o lado, para a janela. Lá estava o cemitério São João Batista, a fragilidade da vida, as dúvidas, as certezas, os sonhos e a eternidade, que pode ser mais curta que a Quinta Avenida ou uma rua da Zona Sul do Rio.

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