sábado, 15 de março de 2014

Morte e Vida, Severino

Meu tio faleceu na quinta-feira à noite e foi enterrado ontem. No velório do coroa (que já estava no hospital há meses por conta de um câncer) estavam quase todos os parentes - só não vieram os que são de Pernambuco e da Paraíba - e seus amigos de boêmia. Tenho certeza que puxei o gosto pela farra daquele velho sacana que sempre tinha um copo em uma mão e uma mulher na outra. Nunca casou, mas no seu velório três viúvas foram chorar.

Trocando uma ideia com um dos melhores amigos do velho, ouvi a frase "seu tio já estava morto há uns cinco anos. Na vida, um homem morre duas vezes: quando perde a esperança em um mundo melhor e quando começa a broxar". Concordei. Realmente, meu tio, no auge dos seus 65 anos não era mais o mesmo jovem que, mesmo sendo de pouco estudo, sempre fora politizado. Vivia dizendo que o país não tinha mais jeito. E para piorar, quando ficou de cama no hospital, teve que ficar sozinho, sem uma fêmea ao lado, como era e costume em outros tantos dormitórios.

Como ele era um cara alegre, presto uma homenagem com um conto que fiz em 2010 e que fala - com humor - sobre a passagem da vida para a morte. Descanse em paz, tio Severino, estou aqui para te honrar, na esperança e nas farras.

A Farsa de Rita
Um bar um tanto sórdido. Um homem só bebia a cerveja mais barata da casa.

- Cláudio?
- Sou eu, por quê?
- Prazer. Meu nome é Rita.
- Belo vestido de cetim, Rita.
- É. Conhece aquela música do Raul Seixas, que diz que a morte vem vestida de cetim?
- Sei. Adoro Raul. A música foi feita pra você?
- Digamos que sim...
- Tô louco pra te beijar...
- Você é apressado. Tá explicado porque me mandaram te encontrar tão cedo.
- Rita, você é daquela agência de relacionamentos... a “centro das almas gêmeas"?
- Digamos que sou de outra agência. Também trabalhamos com almas. Vendemos algumas por ótimos preços a um tal de Lúcifer. Michael Jackson valeu uma nota preta.
- Para de falar essas coisas, meu bem. Eu tenho um medo do cão. Que os deuses me livrem!
- Esses aí só resolvem as coisas depois de mim.
- Afinal, o que você quer?
- É por isso que eu prefiro os ataques cardíacos fulminantes. Eu não preciso ficar explicando quem eu sou ou o que quero. Que no fim é a mesma coisa: o fim.
- Quer um cigarro?
- Não uso. Isso te mata aos poucos, sabia?
- Não tenho pressa pra morrer.
- Então vou te levar de carro. O trânsito desta cidade é de matar. Adoro essas piadas. Morro de rir...
- Você é estranha.
- Você é burro. Sempre achei que burrice deveria ser uma doença mortal. Bom, vou falar na cara, não tenho a vida toda, aliás, você também não. Cláudio, eu sou a morte. Estou aqui para te levar. Enfim, é o fim.
- Morte? Tá de brincadeira! Eu sou novo pra morrer! Por que você não vai buscar a Hebe ou o Niemayer - lembrando que o texto é de 2010...
- Eles estão fazendo hora extra aqui na terra. A Hebe vai assistir o fim do SBT e o Niemayer verá o fim da revolução em Cuba (chegaram perto). Nós não temos preconceito com idade, com raça, nem com nada. Como diria Chico César: "alma não tem cor".
- Me dê mais uma chance... só mais uns anos...
- A vida é tão curta quanto pênis de japonês, meu jovem. Este é seu epílogo. Mas, como você é muito burro, e em minha opinião, morte para os ignorantes é castigo pouco. Vou te dar uma chance: uma partida de sinuca. Se você vencer eu vou embora sozinha. Se perder, tá perdido...

Um airoso pano verde forrava o corpo de madeira. Eis a mesa de sinuca. Eis Cláudio face a face com a sua morte:

- Matei!
- Este bordão é meu, Cláudio. Que merda de jogada que fiz!
- Dona Morte, a senhora se suicidou...
- Odeio cair em contradição...
- Eu ganhei. Putaqueparil. Eu ganhei! Venci a morte. Porra! Eu venci a morte. Venci! Vou ficar vivo! Venci! Venci! Porra! Ganhei! Eu...

E o rádio tocava: “Calma alma minha, calminha...”

- Olha o coração, meu jovem... Morreu. Eu avisei.

Um comentário:

Paula S disse...

Meus sentimentos, Fê. Esse conto é muito engraçado! Pra não ficar sme postar, vc podia fazer uns mixs desses às vezes, rsrs