quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Uma garota e um desodorante

Dava para ver do início da rua aquelas curvas chegando. Todo aquele corpão era acentuado por um cabelo liso vermelho. Nem a mais honesta das revoluções tinha uma tonalidade tão bonita. Isso sem contar o par de olhos verdes. Ah, dois belos motivos para se enxergar um mundo melhor! A mulher que descrevo, dona de uma beleza sem par, brindava o bar com sua áurea toda santa sexta-feira: o dia do pecado.

Sem perder muito tempo, colocava com o cuidado de uma mãe a bolsa sobre a mesa e sentava, sempre sozinha. E não havia cantada que a conquistasse. Pegava o grudento caderno em que se encontravam os códigos das músicas do karaokê e abria na letra A: Arnaldo Antunes. Sabia a senha de cor. Fácil, fácil. Difícil era decifrá-la.

Após a interminável fila de canções chegava sua vez de soltar a voz. E o fazia com mais gosto que afinação:

“Ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer essa mulher
ela goza com o sabonete
não precisa de você
ela GOZA com a mão
não precisa do seu PAU
ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer essa mulher
que não sente a sua falta
e quando você chega em casa ela não sente a sua presença
ela tem um travesseiro mais macio do que o seu braço
e um acolchoado muito mais quente que o seu abraço
ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer ESSA MULHER”


Seu desempenho na máquina de cantar era menos chocante que sua interpretação. Essa mulher plantava pés de interrogação nas férteis e já embriagadas mentes que povoavam o boteco. Isso se dava devido ao parceiro de dança da ruiva: um desodorante. Sim, um desodorante. Um saliente e pequeno roll on branco, vestido com uma camisa de látex. Ou de vênus. A cena era de outro mundo.

Depois de cantar mais dois ou três hits aleatórios, a jovem pegava o caminho de casa, que, pela paz em suas passadas, não parecia ser longe do bar. Era ela sair que os sussurros, impossíveis de serem ouvidos, entravam sem pedir licença no já imundo estabelecimento. Era um bafafá danado. O único consenso, tal qual a um voto cego, era de que a senhorita era casada com o objeto. Um ou outro bêbado mais linguarudo garantia até ter ido à cerimônia, rezada pelo padre Carlinhos.

Devo admitir que ela mexia com as minhas duas cabeças. Um dia, depois de memoráveis doses de rabo-de-galo, resolvi puxar papo. Durante a conversa conheci uma mulher inteligente, centrada, entendedora de música e literatura. Garantia com seus debochados lábios que era psicóloga de formação. Mas o álcool, esse ser que não combina com freios (só com feios), me fez fazer a tão esperada pergunta:

– E esse desodorante aí?
– O que tem? Não usa? – disse ela.
– Acho que não para a mesma coisa que você, mas juntos, quem sabe... – blasfemou o mamado.

Depois de gargalhar como se os vizinhos não tivessem ouvidos, ela retrucou:

– Esse é meu marido! Melhor que qualquer homem. Me satisfaz, é cheiroso e a quantidade de álcool que contém serve apenas para coisas positivas...

Sem argumentos, tentei um sorriso amarelo que logo foi calado pela próxima carreata de frases:

– Você e todo mundo deve achar que sou louca por isso, mas não sou não. Sou uma evolução. Algumas correntes da psicanálise defendem que histeria feminina se cura com piroca. Eu curo a minha sozinha, com o meu amiguinho aqui. Agora me deixa ir, que esse papo me deu vontade de ficar perfumada. Você devia tentar uma saboneteira. Pode ser divertido.

E foi embora. Evaporou como se fosse a fumaça de um aerossol. Apareceu mais umas duas vezes no Verdinho depois desse episódio. Sempre acompanhada de seu inseparável marido. Depois sumiu. Não sei ao certo, mas há quem diga que hoje trabalha como revendedora da Avon.

*Este conto foi publicado no livro Histórias de um Boteco Verdinho, editora Perse. Quem quiser adquirir a publicação, o link está aí: http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1375213929137

Nenhum comentário: