segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Partida

Saiu de casa pela manhã já pensando no regresso, no fim da tarde. Não que não gostasse do trabalho na repartição pública, no centro da cidade, a duas horas da casa onde vivia no subúrbio. Apesar de o trabalho empobrecer o homem, no caso de Carlos, torcedor fanático de um time da quarta divisão, a labuta rendia uma vida bem melhor que a vida que ele teve quase a vida toda. Morava sozinho. Não tinha parentes próximos. Introspectivo, nem pelos vizinhos fofoqueiros era notado. Teve umas paixões na juventude, mas amava mesmo era aquele time de futebol. O amor é a paixão que nunca morre. E naquela noite, seu grande amor iria vir a campo. Na decisão da quarta divisão. Se ganhasse o jogo, subia para a terceira. Em caso de derrota, amargaria mais um ano no inferno futebolístico.

Na repartição, fez o que tinha que fazer com o foco e a eficiência de sempre. Era muito querido por ser um bom funcionário. Separou papeis, ajeitou cadastros, carimbou documentos. No entanto, seu coração e cabeça estavam no interior do país, onde seu time faria o jogo decisivo mais tarde. Quando os jogos são na cidade onde reside, Carlos vai a todos. Já foi até a outros munícipios acompanhar a equipe. Contudo, essa partida, marcada para 21h, no outro lado do país, se tornou inviável para o apaixonado torcedor.

Carlos saiu da repartição no mesmo horário de sempre: 17h. Normalmente, leva duas horas para chegar em casa. Tempo perfeito. Chegaria com horas de sobra para comer algo e se preparar, como se fosse um jogador, para o conflito decisivo. Porém, a situação não foi tão fácil assim.

O torcedor pegou um engarrafamento fora do normal. Ou o engarrafamento o pegou. Piadas ruins à parte, Carlos não estava achando a menor graça naquilo tudo. Levantou-se do assento do ônibus e pediu para o motorista abrir a porta. Estava decido a tomar outro caminho. Afinal, já eram 19h. O condutor do veículo avisou que não era uma boa ideia, pois um protesto de grande porte havia tomado conta de boa parte da cidade e os ânimos estavam aflorados. A população estava revoltada com o prefeito e os conflitos entre manifestantes e policiais se fizeram dignos de um clássico regional em final de campeonato internacional.
Carlos não quis nem saber. Sua opção política, religião, e revolução eram seu time. Desceu do coletivo e se meteu pelas ruas do centro, tentando achar uma condução para o bairro onde mora. Sem sucesso. Pontos de ônibus quebrados, veículos incendiados, estações de metrô e comércios fechados. Carlos passou a se preocupar. Já eram 20h.

Inclusive, o relógio que Carlos tanto olhava entrou no problema. Em meio aos conflitos entre policiais e manifestantes, algumas pessoas se aproveitaram para fazer saques. Flutuando pelas ruas, atônito, Carlos foi vítima de um desses aproveitadores. O homem passou e levou sua carteira, celular e relógio. Carlos foi roubado. Situação que lhe lembrou o campeonato de 1979, quando seu time caiu por erros de arbitragem.

Foi então que Carlos se enfureceu. Sabendo que poderia não conseguir assistir o jogo mais importante da história do clube do coração em décadas, ele se transformou numa espécie extremamente violenta: o zagueiro brucutu. Junto com os manifestantes mais exaltados, Carlos quebrou lojas, repartições públicas e encheu um carro de polícia de pedras. O relógio da região central da cidade já marcava 22h30. Como estaria o jogo? Carlos se questionava enquanto acendia um coquetel molotov. Carlos foi detido por três policias. Carlos foi preso.

O relógio da delegacia indicava meia noite. O jogo já havia acabado. Carlos estava acabado: sujo, machucado e, principalmente, sem saber o resultado da decisiva partida. O delegado olhou para Carlos, que estava sem documentos e sem muitos motivos para se defender, e disse: “Apesar de não merecer, considerando sua idade e a história que contou sobre o roubo dos documentos, o senhor tem direito a um telefonema”.

Carlos foi ao telefone, discou um número e perguntou: “Quanto foi o jogo?”.

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