sexta-feira, 19 de junho de 2015

Corte

Os braços, ainda mais fortes que gordos, apontam a antiga - ou eterna - profissão. Agnaldo, o sujeito negro e alto que carrega espelhos com o cuidado de uma mãe, é um ex-boxeador. "Ex" pode ser bobagem de quem escreve.

Embora não tenha acertado a fama, Agnaldo levantou bastante dinheiro com seu potente punho esquerdo. Mas as cifras, assim como os amores (apesar de serem um pouco diferentes) se vão. As de Agnaldo se foram. Esquivaram-se.

A vida, quando começa a bater, não dá um murro só. Agnaldo, na fase que a grana estava indo para a lona, precisou operar o quadril e foi proibido de lutar.

Filho de família pobre, Agnaldo não tinha como dar passos para trás. Como fazia no ringue. Boxe também se ganha com os pés. Foi atrás de olhar para frente. Arrumou emprego como auxiliar de estoque em uma loja peso médio no mercado de espelhos.

Agnaldo demorou incontáveis rounds para se adaptar. Acostumado com a truculenta vida dos ringues, não conseguia agir com a suavidade que alguém que trabalha com vidro precisa ter.

Isso passou. A vida sempre continua. O pior é o que fica. O que há. O que somos. O que é. Toda vez que se olha em um espelho, Agnaldo se vê. E ele não enxerga um carregador de espelhos. Era um boxeador. Porém não pode ser. Não sabe mais como ser o que era. Isso corta mais que jab no supercílio. Corta mais que espelho quebrado.

Um comentário:

Paula S disse...

Depois de duas enganadas, voltou a mandar bem, rs. Muito bom!